A única maneira de amar é fazer tudo certo | Do Amor #222
A palma trêmula investigava a ausência ao lado. Os lençois gelados, a depressão que o corpanzil deixava no colchão já bem menos acentuada, o odor no quarto pouco avinagrado dos suores da madrugada. Significava que a porta do cômodo havia sido aberta e o ar fresco já escapava da liberdade na sala para o ambiente cavernoso em que ela estava. Seu marido há muito já estava de namoricos com a aurora.
Encheu a caneca branca esmaltada até a boca de café preto, pegajoso de açúcar. Os pés descalços se acostumando com a aridez do chão na cozinha, passinhos cortados a levaram até a janela embaçada. Esclareceu o vidro com a manga do pijama e cumprimentou a paisagem leitosa com uma careta. O frio racharia seus dentes caso se atrevesse a sair. A cabana de pedra que chamava de lar seria, mais um dia por inteiro, seu útero particular. Se alimentaria dos pães e das saudades dele. Aliás, pensou, girou nos próprios calcanhares e foi buscar no cesto duas fatias já cortadas previamente por ele. Passou geleia nas duas, ele fazia versões mais ácidas para agradar o paladar dela. A lareira crepitava uma dança sensual vermelha e azul. Foi convidada a sentar-se na cadeira de balanço à espera do passar das horas.
Lá fora, ele empurrava sua carcaça pelo sereno denso, tinha a impressão de que o céu devia estar bem desgostoso com alguém para chorar naquela intensidade. Usava um cardigã pesadíssimo, de um creme já meio amarelado. Botas de couro, luvas, um gorro de lã vermelho sem cobrir as orelhas, maneirismo adquirido com os marinheiros mais velhos quando era apenas um garoto, isso cinquenta e alguns anos antes. Aprendeu daquele jeito, replicou até sua velhice. Havia saído de casa ainda no escuro, guiava-se pelo costume até sua embarcação, sem a luz que, a seu ver, só faria gastar óleo à toa. Na canoa, antes de começar a arrumação, repassou a ordem preferencial das incumbências, era assim que ele conseguia agir, um mise en place de tarefas que ia repetindo na cabeça para não se esquecer. Foi assim, horas antes, em sua casa, fatias varrer o chão, fatias os pães sem deixar migalhas pelo chão, fazer café bastante doce, deixar a lareira com fogo intenso para esquentar a cabana assim que ela saísse do quarto, botar a geleia que ela gosta perto da cesta fatiada. Sorriu infantil com os ombros perto das orelhas por ter pensado nesse pequeno mimo. Na nau, organizou as cordas de cânhamo, organizou as redes por tamanho, conferiu buracos, orifícios e frestinhas. O mar esbranquiçado dava sopapos de espumas na popa, inquiria o velho marinheiro de suas obrigações, vamos, veleje, pesque, dê logo sua atenção aqui. E ele devia mesmo de soltar os nós e navegar. Dias e dias, talvez perto de uma semana, precisaria acumular em suas caixas peixes e outras vidas marinhas para subsistência. Compraria, com o dinheiro, claro, comida, uma manta nova, vedaria melhor o telhado. E compraria o perfume que sua esposa gostava tanto de usar, o mesmo que ela havia passado no pescoço fino meio século antes,quando se conheceram na feira de primavera. Suspirou aquele peito enorme ao se recordar.
No livro que ela lia tinha um personagem com nome igualzinho ao do filho que eles não tiveram. Ela tinha na ordem o nome dos três, sim, seria um trio nos desejos dela, um garoto, uma menina no meio e outro moleque. Já passadas tantas décadas da certeza de que não procriariam, se percebia num cenário mais nostálgico que frustrado, não perecia ao recordar dos planos inconcluídos, via-se naquele passado inocente com ternura, eram, aquele dias, os de sonhar mesmo. Buscou trazer-se de volta tirando os olhos do livro e botando-os na paisagem albescente lá de fora. O movimento que enxergou era pálido, mas contundente. Seu enorme marido movia-se sempre de maneira impetuosa, avançava pelo sereno com as costas largas servindo de abrigo, envergado na vitoriosa tentativa de cortar a ventania. Entrou na cabana e trancou a porta com uma tranca de ferro. Retirou-se da roupa molhada, descalçou as botas alaranjadas do barro lá de fora. Ela levou-o até a cozinha e serviu-lhe café novo. Fumegava entre as mãos grandes dele. Ela olhou-o demoradamente, aquele senhor agigantado, volumoso, de corpo e de aura, ocupava a cabana toda com sua presença, o nariz farto e indelicado, as sobrancelhas florestais, os olhos rígidos, mas com as maçãs do rosto vermelhinhas do frio, uma espécie de bebê envelhecido. Com uma colher grande cheia de gordura, fritou meia dúzia de tiras gordas de carne de porco, três para cada. o bigode dele ficava mais e mais brilhante de toucinho, arrotaram café e banha, E riram. Finalmente ela perguntou qual seria o motivo de ele não ter velejado naquela manhã. Os dedos graxos dele tomaram as mãos dela em abrigo e disse hoje eu fico, fico com você, amanhã eu saio. Ela beijou a testa do homem e foi cortar mais umas fatias de pão.